Nesta sexta-feira (19), lembrado o Dia dos Povos Indgenas
O futuro dos povos originrios brasileiros um campo de disputas e possibilidades, marcado por contradies. Essa a principal concluso da srie de entrevistas com intelectuais, lideranas e ativistas indgenas que a Agncia Brasil publicou esta semana, por ocasio do Dia dos Povos Indgenas, lembrado nesta sexta-feira (19).
Estamos em um momento de protagonismo dos povos indgenas [...], mas, de fato, temos uma questo estrutural, problemas histricos, resultado do abandono, do descaso do Poder Pblico, reconhece a ministra dos Povos Indgenas, Sonia Guajajara.
O nmero de pessoas que se autodeclaram indgenas cresceu no pas quase seis vezes entre 1991 e 2022, perodo em que representantes de diferentes etnias aram a ocupar espaos e posies antes inveis e a presena de estudantes indgenas em cursos de graduao e ps-graduao se tornou comum graas, principalmente, implementao de uma poltica nacional de cotas. No entanto, mazelas seculares, como a violncia, a discriminao, as violaes aos territrios tradicionais e aos direitos bsicos e a precariedade da assistncia sade e da educao indgena seguem alimentando crises humanitrias como as que vitimam os yanomami, na Amaznia, e os guarani e kaiow, no Mato Grosso do Sul, entre outros povos.
Temos que consolidar a participao indgena nos espaos onde as polticas pblicas so pensadas, decididas e executadas, prope Sonia, para quem o reconhecimento da importncia da contribuio dada pelas 305 etnias indgenas identificadas no Brasil, bem como o respeito a seus direitos, fundamental para a construo de uma sociedade mais justa e sustentvel.
Nascida na Terra Indgena Arariboia, no sul-maranhense, em 1974, Sonia Bone de Sousa Silva Santos cria dos movimentos sociais. Deixou sua comunidade, ainda jovem, para estudar. Formou-se em letras pela Universidade Estadual do Maranho (Uema), onde tambm fez ps-graduao em educao especial. Atuou em diferentes organizaes indgenas, tendo sido coordenadora nacional da Articulao dos Povos Indgenas do Brasil (Apib). Filiada ao PSOL, foi candidata a vice-presidente do Brasil, em 2018, na chapa encabeada por Guilherme Boulos.
Quatro anos depois, tornou-se a primeira indgena eleita deputada federal por So Paulo, com mais de 156 mil votos. Licenciou-se do cargo para assumir o comando do indito Ministrio dos Povos Indgenas, criado no incio da atual gesto federal. Em 2022, a prestigiada revista norte-americana Time a apontou como uma das 100 personalidades globais mais influentes do ano.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista que a ministra Sonia Guajajara concedeu Agncia Brasil.
Agncia Brasil: Ministra, evidentemente, o futuro no est dado, mas, considerando o contexto, como a senhora imagina que os povos indgenas brasileiros estaro organizados poltica e socialmente? Qual o futuro dos povos indgenas?
Sonia Guajajara: Falar do futuro dos povos indgenas falar do futuro de toda a humanidade. No h, por exemplo, como pensarmos em solues para a emergncia climtica global sem levarmos em conta, respeitarmos e valorizarmos os diferentes modos de vida dos povos indgenas. Por isso, quando me perguntam como ajudar aos povos indgenas, costumo responder que, hoje, ns que estamos em condies de ajudar o restante da humanidade. Seja colaborando para pensarmos [o futuro], seja ajudando as pessoas a serem mais solidrias e a terem uma maior conscincia sobre a importncia de protegermos o meio ambiente e a biodiversidade.
Agncia Brasil: Por isso a senhora tem dito que o propsito do ministrio construir uma sociedade capaz de reconhecer a contribuio e a importncia das culturas indgenas como forma de valorizar a identidade nacional e garantir o futuro do planeta?
Sonia: Exato. Os povos indgenas deram e do uma enorme contribuio para a [construo de uma] identidade nacional. Apesar disso, os brasileiros ainda desconhecem a realidade e a diversidade de povos, culturas e territrios indgenas existentes no pas. Defendo uma tomada de conscincia poltica, ecolgica e ambiental em relao ao que representa a presena indgena. Porque as pessoas s vo respeitar tudo isso a partir do momento em que tiverem conhecimento desses aspectos. Da a importncia de os estabelecimentos de ensino, da educao bsica s universidades, acolherem os estudantes indgenas, inclusive por meio de cotas, e tambm os nossos sbios e nossas lideranas, [estimulando a] troca de saberes e buscando compreender melhor os conhecimentos tradicionais.
Agncia Brasil: Vou insistir na primeira pergunta. Indgenas como a senhora ocuparam espaos antes inveis, no s institucionais, como o ministrio, a presidncia da Funai e assentos no Parlamento, mas em outros setores, como o assento que o filsofo, ambientalista e escritor Ailton Krenak recentemente conquistou na Academia Brasileira de Letras. Nos territrios, acampamentos e reas retomadas, contudo, no s os problemas persistem como, em alguns casos, se agravaram, como as ameaas aos territrios j homologados. Como pensar o futuro dos povos indgenas neste contexto?
Sonia: Estamos, sim, em um momento de protagonismo indgena. Representantes ocuparam espaos e cargos estratgicos, trazendo nossas cosmovises inclusive para dentro das instituies. Esta uma forma de aldear o Estado e a poltica. Agora, de fato, temos uma questo estrutural, problemas histricos, resultado do abandono, do descaso do Poder Pblico. Lgico que precisaremos de aes articuladas para [responder] aos problemas causados pela falta de qualidade do ensino, sade insuficiente e desvalorizao cultural. Para isso, temos que consolidar a participao indgena nos espaos onde as polticas pblicas so pensadas, decididas e executadas. Estamos trabalhando nisso. Com&8239;a&8239;criao&8239;do&8239;Ministrio&8239;dos&8239;Povos&8239;Indgenas e com indgenas frente da Funai, podendo conduzir a sade indgena e ocupando os espaos de participao, podemos promover&8239;mais dilogo e, juntos, construirmos uma poltica indigenista adequada s nossas realidades.
Agncia Brasil: Que outras aes so importantes alm dessa consolidao da participao poltica indgena junto s instituies?
Sonia: A garantia territorial continua sendo a bandeira de luta prioritria dos povos indgenas no Brasil. No Censo de 2010, foram contabilizados cerca de 900&8239;mil&8239;indgenas.&8239;J no Censo 2022, cerca de 1,7 milho de pessoas identificaram-se como indgenas. uma mostra de que a populao indgena vem crescendo, de que h muito mais pessoas orgulhosas de se assumirem indgenas, ao contrrio do perodo em que elas tinham medo e negavam suas identidades. Isso tende a fortalecer a luta pela valorizao da cultura indgena. Acredito que a tendncia a populao indgena crescer cada vez mais. E a [homologao] dos territrios fundamental para que isso acontea, j que o controle dos territrios fortalece a cultura&8239;e&8239;a&8239;identidade dos povos indgenas e nos possibilita avanarmos na implementao de outras polticas pblicas. Estamos trabalhando neste sentido. Estamos conscientes de que, diante&8239;da&8239;invisibilidade e desvalorizao da presena indgena, precisamos&8239;avanar&8239;muito e rpido. No&8239;ano&8239;ado,&8239;homologamos&8239;oito&8239;novas terras&8239;indgenas. quase o mesmo nmero de terras homologadas nos dez anos anteriores [11]. Continuamos articulando para que novas demarcaes saiam ainda este ano [na noite desta quinta-feira (18), o presidente Luiz Incio Lula da Silva homologou duas novas terras indgenas, ampliando para dez o total de territrios para usufruto exclusivo dos indgenas j reconhecidos na atual gesto]. E tambm para fortalecer a Funai, para que ela possa estabelecer os grupos de trabalho responsveis pelos estudos de identificao e delimitao territorial. Simultaneamente, temos olhado para os indgenas em contexto urbano, que precisam&8239;de&8239;polticas voltadas s suas realidades.
Agncia Brasil: O que mais desafiador do ponto de vista poltico: lidar com a crise humanitria que afeta os yanomami, expulsando os invasores da rea indgena j homologada, ou encontrar uma soluo para o conflito que envolve as comunidades guarani-kaiow de Mato Grosso do Sul, que vivem espremidas em territrios exguos, cercadas por aglomerados urbanos e extensas fazendas de soja?
Sonia: Acho que no h uma situao mais desafiadora que outra. So realidades diferentes que demandam a mesma urgncia [do Poder Pblico]. H, no pas, indgenas [vivendo] em contato [com no indgenas] h 400, 500 anos. H os de contato mais recente. H os que vivem em contexto urbano e os que vivem isolados, entre os quais h alguns que no tm contato nem mesmo com outros grupos que habitam o mesmo territrio. So realidades diversas e no coloco nenhuma dessas situaes como prioritrias. Temos territrios demarcados invadidos pela explorao ilegal de madeira, de minrio, pela grilagem, e reas no demarcadas, como as reivindicadas pelos guarani-kaiow que permanecem acampados ou em [reas]&8239;retomadas, em meio a&8239;conflitos. So desafios que precisamos enfrentar. Diante da correlao de foras entre o Poder Executivo e setores do Congresso Nacional que se colocam contra [o avano da] pauta indgena, , de fato, uma conjuntura poltica um tanto adversa. Ainda assim, temos retirado no indgenas das reas homologadas e seguimos dialogando, implementando aes para avanarmos na regularizao fundiria, inclusive em Mato Grosso do Sul.
Agncia Brasil: Durante a sesso da Comisso de Anistia que resultou no pedido de desculpas do Estado brasileiro s comunidades krenak, guarani e kaiow por violaes aos direitos humanos cometidos durante a ditadura, um representante do ministrio leu uma mensagem que a senhora enviou. Nela, a senhora sustenta que o Estado precisa reconhecer e reparar todas as violaes que os povos indgenas sofreram como forma de evitarmos que os fatos se repitam. A que outras violaes a senhora estava se referindo?
Sonia: Olha,&8239;so&8239;tantas as histrias de violaes e de&8239;violncia&8239;contra&8239;os&8239;povos&8239;indgenas. H exemplos&8239;como o da Cadeia Krenak,&8239;instalada em Resplendor [MG],&8239;para onde&8239;indgenas de diferentes povos eram levados e onde eram torturados e tinham suas condies de indgenas postas prova. Muitos povos indgenas foram forados a deixar de vivenciar suas culturas, suas identidades. Isso no pode mais se repetir.
Agncia Brasil: O Ailton&8239;Krenak&8239;diz&8239;que,&8239;se&8239;houver&8239;futuro,&8239;ele ser ancestral. A senhora concorda?
Sonia: Sim. O futuro ancestral porque a pelo respeito aos modos de vida dos povos indgenas, respeito relao desses povos com a natureza. Hoje, somos 5% da populao mundial, mas protegemos 82% da biodiversidade planetria. Isso significa que, enquanto os direitos indgenas estiverem ameaados, a biodiversidade estar ameaada. E a humanidade inteira estar em risco. Portanto, importante reconhecer os povos e a cultura indgena como parte fundamental da garantia de futuro.
Agncia Brasil: Nesse aspecto, qual o papel da juventude indgena?
Sonia: fundamental que a juventude indgena esteja comprometida com a continuidade da luta de nossos povos pela valorizao de nossas identidades. Os jovens tm feito isso assumindo diferentes formas de&8239;protagonismo, inclusive na comunicao. H jovens usando as redes sociais para mostrar que ns, indgenas, no estamos s nas aldeias, o tempo todo pintados e com cocar. Tambm podemos estar nas universidades, no Parlamento, ministrios, em debates globais. , tambm, um papel fundamental.
FONTE: Agncia Brasil
