Na vanguarda da incluso, nasce em MS a primeira lngua indgena de sinais oficial 6b472s
Publicado em 27/07/2023
Editoria: Educao
Elcio, Everton, Maria Eliza. Dos sete filhos de dona Ondina, mulher indgena da etnia terena, nascida e criada na Aldeia Cachoeirinha, em Miranda, trs so surdos.
A descoberta veio pelas mos das crianas ainda bebs. Quando, em vez de falarem, apontavam para o que queriam, nascia ali uma lngua de sinais caseira, que viria a ser a lngua terena de sinais oficializada.
no galpo anexo Igreja Catlica, construda em 1931, na Aldeia Cachoeirinha, que as mos falam e os olhos ouvem no III Encontro de Terena Surdos, resultado da luta de Ondina pelo respeito cidadania dos filhos, e que hoje se estende a toda comunidade surda da regio.
J ei por muitos obstculos junto com os meus filhos. J ei frio, ei fome, j chorei, j chorei muito. Fui discriminada junto com eles e sei o quanto a sociedade tem um olhar preconceituoso contra eles por serem surdos e indgenas. Por esse motivo que estou nesta luta e, enquanto eu estiver viva, nunca vou me calar diante dos preconceitos e discriminao contra qualquer indgena surdo, se compromete Ondina Antnio Miguel, de 57 anos.
O tema do III Encontro sobre educao e lingustica dos indgenas terena surdos e acontece a 100 metros de onde a famlia de Ondina sofreu a primeira discriminao, 20 anos atrs. Por no ter intrprete de lngua de sinais, a escola da comunidade avisou que no teria condio de dar aula para Elcio, o filho mais velho de Ondina.
A me no se cansa de contar a histria. Durante quatro anos a educao do filho ficou suspensa. Ele no ia escola, at que a famlia foi levada cidade para procurar acolhimento e estudo.
Na terceira porta que Ondina bateu, a direo da escola no s aceitou as crianas como abraou a famlia trazendo-os inclusive para fazer exames em Campo Grande. Ainda assim, era preciso percorrer diariamente 30 quilmetros contando ida e volta da aldeia para a cidade.
Meu filho Elcio concluiu o Ensino Mdio, se mudou para Campo Grande em busca de mais oportunidades. O Everton tambm concluiu o Ensino Mdio e atualmente est morando comigo. A Maria Eliza seguiu o seu caminho, estudou, casou-se com um surdo e tem dois filhos fluentes em Libras, eles moram em Campo Grande. Eu, como me, sigo batalhando por eles para continuarem estudando e realizarem os seus sonhos. Eu no perco a esperana porque sei que eles so capazes, ressalta a me.
Ondina hoje falante de quatro lnguas, a terena e a lngua portuguesa, a lngua terena de sinais e Libras (Lngua Brasileira de Sinais). Mas, para que ela aprendesse a Libras, e os filhos no deixassem de usar a lngua terena de sinais, foi preciso unir muitas mos num trabalho pela incluso.
Entre tantas lnguas faladas e sinalizadas, Ondina se confundiu em sua apresentao. Ela me de indgenas surdos e fluente em Terena, Portugus, Libras e Lngua Indgena de Sinais
Da reivindicao ao direito lingustico
Em 2007, os caminhos de Ondina e Denise Silva se cruzaram, durante o doutorado da professora, hoje ps-doutora em Lingustica, tcnica da SED (Secretaria de Estado de Educao), representante da Unesco no Estado e atuante em trs frentes para a preservao das lnguas indgenas.
Um dia cheguei na aldeia e ela me falou da dificuldade que estava tendo em se comunicar com os filhos, porque ela falava, eles no entendiam e estavam se isolando. Fui tentar entender, e o que estava acontecendo que quando o surdo aprende Libras ele automaticamente deixa estes sinais caseiros de lado, explica Denise.
Como a convivncia dos trs filhos de Ondina se dava mais tempo na escola do que em casa, eles aram a sinalizar Libras e escrever o portugus com a gramtica da lngua de sinais. Temos lnguas coexistindo ali, e eles no conseguiam estabelecer uma comunicao. No era um problema emocional, nem rejeio, e sim uma dificuldade de comunicao, pontua a tcnica da SED.
Lanamento do curso de formao em Lngua Terena de Sinais foi realizado no dia 18 de julho, onde a discusso nasceu, na Aldeia Cachoeirinha, em Miranda.
Do encontro oficializao da Lngua Terena de Sinais
O contexto foi levado ao doutorado e uma unio de esforos e movimentos se concentrou em fazer com que no s a famlia de Ondina, mas todos os demais indgenas surdos tivessem o direito lingustico garantido. Das discusses sobre o o educao e o espao na sociedade surgiram os encontros de surdos terena, que contaram com a participao de Shirley Vilhalva, professora indgena surda, doutoranda em Lingustica Aplicada e professora titular da UFMS.
Shirley pesquisadora e atua desde os anos 1990 com Libras, indgenas surdos e lngua de sinais indgenas. No ado eu fui muito contra os alunos sarem da aldeia e vir para a cidade porque parecia que ocorria um desligamento cultural. O trabalho tem que ser dentro da aldeia, por isso hoje estou muito emocionada, porque o grupo conseguiu a oficializao da lngua terena de sinais. Estou extremamente feliz com o nosso trabalho, sinaliza em Libras.
Com a proclamao da Dcada Internacional das Lnguas Indgenas (International Decade of Indigenous Languages IDIL 2022-2032), constituda pela Unesco (Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura), o Governo do Estado desenvolve o Plano Estadual para a Dcada das Lnguas Indgenas como forma de preservar a cultura das comunidades que vivem em Mato Grosso do Sul.
Dentro da ao da Unesco, os olhos do mundo se voltam ao trabalho iniciado em Miranda, primeira cidade do Brasil a co-oficializar uma lngua indgena de sinais, a LTS (Lngua Terena de Sinais) em decreto publicado no ms de abril deste ano. Na prtica, o municpio tem como lnguas oficiais o portugus, Libras, terena falada, terena de sinais e kinikinau.
A lngua terena de sinais j est reconhecida como lngua tanto dentro da academia quanto como poltica local. O prximo o reconhec-la como lngua de instruo, processo que est em tramitao no Conselho Estadual de Educao.
Movido pela fora de Ondina, a me que segue na luta pela incluso dos surdos terena, o trabalho de toda uma rede composta pela Secretaria de Estado de Educao, Coordenadoria de Modalidades Especficas, CAS (Centro de Apoio ao Surdo), UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), UFPR (Universidade Federal do Paran) e Ipedi (Instituto de Pesquisa da Diversidade Intercultural), no para.
Pioneirismo sul-mato-grossense
No III Encontro de Surdos Terena foi lanado o primeiro curso do Pas de formao de tradutores e intrpretes de lngua terena de sinais, que ser feito atravs do programa de educao a distncia usando a plataforma Universidade Aberta da UFPR.
A proposta ofertar o curso de traduo e intrprete de lngua terena de sinais, e posteriormente o de prticas de lngua terena de sinais. A formao faz parte do Plano Estadual para a Dcada das Lnguas Indgenas, desenvolvido pela Coordenadoria de Modalidades Especficas da SED voltado para a comunidade terena de Miranda, estudantes e professores.
No que os indgenas surdos no vo aprender a Libras, mas ela uma lngua de comunicao para fora da aldeia. Aqui na comunidade eles precisam ter essa comunicao especial como no caso com a me, com os irmos, visto que o indgena vai pra escola, vai pra cidade e aprende libras, a comunidade no, resume Denise Silva.
Pioneira no Brasil, a proposta da formao de Mato Grosso do Sul servir de exemplo para todos os estados. Esta metodologia que estamos fazendo aqui vai servir de precedente inclusive para os povos do Amazonas, do Acre, Par, Xingu, que esto isolados, para que consigam ter o ao direito lingustico, que antes de tudo um direito humano, especifica a professora e tcnica da SED, Denise Silva.
Sem uma legislao na qual se espelhar, a ao inovadora vem sendo construda a partir de escutas e pesquisas envolvendo as universidades, Secretaria de Estado de Educao e a populao que ser beneficiada: a comunidade terena da Aldeia Cachoeirinha, em Miranda.
Doutora em Lingustica e Lngua Portuguesa, professora do curso de licenciatura em Letras Libras da UFPR, Kelly Priscilla Lddo Cezar a coordenadora da parte pedaggica do curso de formao, e quem conheceu ainda no doutorado a histria de luta de Ondina.
Como linguistas, ns sabemos que a linguagem uma forma de emancipao, natural do ser humano e todas as lnguas so importantes. Ns precisamos pensar que a cada lngua que entra em risco de extino como estava a terena de sinais, a gente pode perder uma lngua, sua cultura e pode perder histrias como a da dona Ondina, descreve.
A formao vem para capacitar a comunidade terena, surda ou no, e principalmente para que a lngua terena de sinais no seja extinta. Ao contrrio de cursos que so adaptados posteriormente, o de lngua terena de sinais construdo a partir das necessidades dos professores, pais e prprios alunos terena surdos.
A maneira de perpetuar o ensino da lngua vem atravs da tecnologia. Coordenadora do Centro de Educao a Distncia da UFPR, a professora Geovana Gentili Santos trabalha para a expanso da aprendizagem onde a pessoa estiver.
Por meio dessa plataforma as pessoas vo poder fazer a formao de onde estiverem, para que a universidade rompa com as suas barreiras geogrficas e, ns possamos levar a formao onde efetivamente necessria.
Se dona Ondina no tivesse lutado pela incluso e encontrado pelo caminho quem abraasse no s sua famlia como a causa dos indgenas surdos, a me acredita que os filhos estariam at hoje isolados.
Ao olhar para trs, a matriarca dos Antnio Miguel fica feliz pela oficializao da lngua terena de sinais e a formao de intrpretes para que a sinalizao que ela entende e fala com os filhos em casa ganhe cada vez mais fora.
Tudo isso significa para mim que a luta nunca ter fim, mas que em breve vai dar bons frutos. Meu sonho para eles, os meus filhos, que eles sejam algum na vida, acredita.
Sem deixar ningum pra trs, uma das premissas do Governo do Estado, fazer de Miranda um projeto piloto para que depois a lngua de sinais seja oficializada e alcance estudantes surdos indgenas guarani.
Sinalizando, Edmara e Everton, filhos de dona Ondina, junto da me, reproduzem o lema que inspira o trabalho de cidadania do Estado de Mato Grosso do Sul: Ningum fica pra trs.
Quero agradecer a todo mundo que veio aqui, que veio de longe, e falar que ns queremos um futuro melhor, finaliza em lngua terena de sinais, Everton Miguel, de 26 anos.
FONTE: Portal MS