Rio de Janeiro/RJ 21/05/2023 Toni Reis, David Harrad e filhos. Foto divulgao.
At abril de 2023, Brasil registrou 76.430 unies em cartrio
Foi um ato de amor, mas tambm um ato poltico. Essa convico une os trs casais homoafetivos que aceitaram conversar com a Agncia Brasil sobre os 10 anos da deciso do Conselho Nacional de Justia (CNJ) de que nenhum cartrio no Brasil poderia recusar a celebrao do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Desde 14 de maio de 2013, portanto, esse registro civil deixou de ser um privilgio de pessoas heterossexuais.
Otvio e Fernando, Fabia e Gabi, Toni e David. Os casais que voc vai conhecer melhor nessa reportagem esto entre os 76.430 que registraram a unio em cartrio desde 2013 em todo o pas. Uma mdia de 7,6 mil casamentos por ano: 56% entre casais femininos e 44% entre casais masculinos.
A lista dos estados com mais celebraes liderada por So Paulo (38,9%), seguido pelo Rio de Janeiro (8,6%), Minas Gerais (6,6%), Santa Catarina (5%) e Paran (4,6%). Os nmeros so da Central de Informaes do Registro Civil (CRC Nacional), istrada pela Associao Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil).
At 2011, os cartrios eram obrigados a pedir uma autorizao judicial para registrar unies homoafetivas. E a sorte do casal dependia do magistrado que julgasse o caso, que em muitos casos negava o pedido. A justificativa era a ausncia de lei, que, vale lembrar, continua no tendo sido contemplada no Congresso Nacional.
O que mudou em 2011 foi uma deciso do Supremo Tribunal Federal (STF) que igualou unies estveis homoafetivas s heteroafetivas. Mas foi s a partir da Resoluo n 175, de 2013, do CNJ que foi autorizado o casamento civil em todos os cartrios do pas.
Otvio e Fernando
Quando Otvio Furtado (44 anos, jornalista) e Fernando Gomes (44 anos, advogado) decidiram que era a hora de se casar, havia a certeza de que seria preciso travar longa disputa judicial. O ano era 2012 e apenas a unio estvel homoafetiva era oficialmente permitida no pas. Os poucos que tinham conseguido o registro civil de casamento tinham entrado com aes na Justia. Mas por uma coincidncia feliz, a unio foi oficializada de forma mais simples e rpida do que pensavam.
A gente deu entrada nos papis em maio de 2013 e normalmente o processo todo levava 30 dias, que era o tempo padro para o Ministrio Pblico manifestar se existia algum tipo de irregularidade. Isso para qualquer casal, inclusive htero. Nesse tempo, a CNJ determinou que nenhum cartrio poderia negar o registro para casais homoafetivos. E o nosso pedido foi o primeiro a ser aprovado no estado do Rio, lembra Fernando.
Em julho, eles estavam legalmente casados e, em setembro, celebravam em uma festa com amigos e famlia. Todo o processo at o dia cerimnia acabou despertando nova conscincia no casal. Eles contam que at, ento, no tinham ado por situaes mais graves de homofobia. O que item ter muita relao com algumas posies de privilgio: so homens, brancos, de classe mdia, morando em um bairro como Ipanema, que concentra um nmero grande de pessoas LGBTQIA+.
Eu sempre falava que no queria ficar levantando bandeira por ser gay. E o nosso casamento foi a grande virada de chave na minha vida. Pela primeira vez, de forma repetida, eu tive que lidar com situaes de homofobia. Na hora de organizar o casamento, por exemplo, a maior parte dos fornecedores no estava preparada para celebrar uma relao homoafetiva. E tinha de tudo, desde a pessoa que achava que na cerimnia ia descer uma drag queen do teto, at as pessoas que perguntavam quem ia fazer o papel da noiva, conta Otvio.
A partir desse conjunto de experincias, os dois aram a se preocupar com pautas que iam alm da prpria bolha.
A gente pensava no casamento como um momento s nosso. E comeou a perceber que era egosmo pensar daquele jeito. Na cerimnia, uma das nossas madrinhas falou de como nossa deciso iria atingir outras pessoas. E a, mais uma vez, caiu a ficha de que aquilo tambm era um ato poltico, que j tinha comeado l atrs quando a gente decidiu registrar em cartrio. Outras situaes foram surgindo e mostrando que eu deveria aprofundar esse caminho do ativismo. Usar o nosso privilgio para abrir portas a outras pessoas, afirma Otvio.
Fabia e Gabi
Gabi Torrezani (31 anos, produtora audiovisual e doula) conseguiu uma oportunidade de estgio na produtora de vdeo da Fabia Fuzeti (47 anos, videomaker). Durante meses, a relao entre as duas evoluiu das conversas sobre trabalho para a amizade e, ento, o namoro. Depois de dois anos, veio a ideia do casamento. O pedido, feito pela Fabia, est registrado em udio no incio do documentrio Vestidas de Noiva, produzido pelas duas para falar tanto do processo de casamento delas, que aconteceu em 2014, quanto do histrico da unio homoafetiva no Brasil.
Com a gente foi super fcil, o juiz de paz foi bem fofo, quis tirar foto com as noivas. Mas a gente sabe que nem todos os cartrios foram assim. Na poca, muitas pessoas ainda escreviam para a gente e falavam que tinham tentado casar na cidade em que moravam e no deixaram. Era obrigatrio, mas muitos cartrios alegavam que no faziam o registro l, diz Fabia Fuzeti.
At o dia oficial do sim, as duas tiveram de ar por algumas situaes desconfortveis. A me de Fabia teve dificuldades para lidar com o fato de a filha estar namorando uma mulher. Mas ao ver que outras pessoas ao redor no se importavam com a situao, no s superou o estranhamento como ajudou nos preparativos do casamento. Os avs da Gabi no compareceram no dia da cerimnia, o que a deixou muito triste pela proximidade que tinha com eles. Mas um ano depois estavam presentes no lanamento do documentrio.
As duas dividem um blog de viagem chamado Estrangeira, que com o tempo ou a focar em experincias especficas do pblico LGBTQIA+. Alm das dicas de viagens sobre destinos mais atrativos e mais seguros, compartilham momentos do casal. Dizem que estavam cansadas de ver histrias com mulheres homossexuais sempre a partir de um vis negativo, seja na fico ou no noticirio: A gente queria ser um modelo de final feliz, diz Fabia.
Por ser uma histria ainda em construo, elas pensam nos prximos captulos e em novas lutas que precisam ser superadas. O casal planeja ter filhos e lamenta no ver uma movimentao poltica mais contundente sobre a igualdade quando se trata dos direitos de maternidade para as mulheres homossexuais.
Para a mulher que no a gestante do casal registrar o beb como filho dela, tem que ter feita a fertilizao em uma clnica. As duas tm que levar um papel provando que so casadas e que fizeram o processo na clnica. Quando um casal htero vai ao cartrio, ningum pede para ver o papel com o registro da relao sexual que gerou o beb. Simplesmente chega l e registra. Isso faz com que mulheres que no tenham grana para procurar uma clnica, que topam uma inseminao caseira, estejam margem da lei e precisem entrar com uma petio judicial. Isso, para a gente, muito violento, afirma Gabi.
As duas defendem a necessidade de que o Sistema nico de Sade (SUS) possa oferecer o direito de fertilidade assistida para todos os que desejarem. Hoje, a legislao privilegia apenas casais heterossexuais.
A fertilidade assistida no SUS para pessoas que eles consideram infrteis, que so basicamente os casais hteros que am por uma triagem. Mulheres saudveis, frteis, que precisam do tratamento para engravidar e ter o ao banco de smen no se encaixam nessa categoria. Toda uma populao fica excluda de um servio de sade que teoricamente universal, diz Gabi.
Toni e David
Toni Reis (59 anos) e David Harrad (65 anos) se conheceram na sada da estao de metr Highgate Station, em Londres, em uma noite de maro de 1990. Nascido no interior paranaense, Toni tinha se formado h um ano em letras na Universidade Federal do Paran (UFPR) e ava uma temporada na Europa para estudar e conhecer novas culturas. Nascido no interior da Inglaterra, David era casado com uma mulher quando conheceu Toni. Do encontro veio a convico de que era o momento certo para viver um relacionamento homoafetivo. Ele se separou da mulher e em 1991 os dois vieram juntos para o Brasil.
No novo pas, David viveu um tempo com a documentao irregular e acabou sendo preso em 1995. Tinha duas opes para no ser deportado e conseguir o visto de permanncia: se casar com uma mulher brasileira ou um contrato de trabalho com uma empresa local. A segunda alternativa era a nica vivel naquele momento, porque o casamento homoafetivo estava longe de ser autorizado no Brasil. At que em 2011, depois da deciso do STF, o casal conseguiu registrar a unio estvel.
Aparecamos nas paradas LGBTI+ vestidos iguais de smoking, de noivos, para chamar a ateno pelo direito ao matrimnio igualitrio. Mas alm do significado poltico, o registro da unio estvel proporcionou uma segurana jurdica que ns no tnhamos antes como casal. Cansei de conhecer histrias de famlias que queriam tomar os bens do parceiro do filho, quando este faleceu. Tambm possibilitou que pudssemos finalmente realizar o sonho de adotar filhos e ser pais, explica David.
O casamento civil dos dois no cartrio, apesar de autorizado pelo CNJ desde 2013, s aconteceu em 2018. At ento, consideravam a unio estvel suficiente. O que os fez mudar de ideia foi o medo de que a eleio de Jair Bolsonaro provocasse a perda de direitos, uma vez que sempre foi explcito o posicionamento homofbico do ex-presidente. Eles cogitaram morar fora do pas e queriam mais uma proteo jurdica caso precisassem viajar com os trs filhos, ento adolescentes.
A gente nunca precisou do papel para o amor. Porm, ele d segurana jurdica para o patrimnio e para os filhos. Ento, tem as vantagens legais. E tem o significado poltico. Hoje, ningum pode falar que ns no somos uma famlia, afirma Toni Reis.
Toni se tornou uma referncia na luta pelos direitos da populao LGBTQIA+. Ele foi o primeiro presidente da Associao Brasileira de Lsbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), fundada em Curitiba em 1995. especialista em sexualidade humana, mestre em filosofia e doutor e ps-doutor em educao. Para ele, o direito ao casamento foi uma vitria importante, mas ainda existe uma srie de desafios a serem superados.
Todas as nossas decises sobre direitos LGBT foram tomadas pelo STF. O que ns precisamos colocar todas essas decises de adoo, casamento, doao de sangue, discriminao em leis que em no Congresso Nacional. Pode durar cinco, dez ou 50 anos, mas ns vamos conseguir. Ns queremos ter tambm o nosso Estatuto da Diversidade Sexual e um estatuto que proteja todas as famlias, diz Toni Reis.
FONTE: Agncia Brasil
