Parece que a gente vive na Faixa de Gaza, afirma jovem indgena
Parece que a gente vive na Faixa de Gaza, afirma o jovem estudante indgena guarani, que a Agncia Brasil no identificar para garantir sua segurana. Ele vive em uma das sete reas de retomada na regio de Panambi Lagoa Rica, em Douradina, em Mato Grosso do Sul (MS).
As retomadas so reas consideradas tekoha, territrios ancestrais, pelos indgenas sul-mato-grossenses e, por isso, ocupadas por eles para forar uma demarcao pelo governo brasileiro. O termo retomada tem justamente o sentido de tomar de volta a terra que um dia pertenceu aos povos originrios e que, durante a expanso agropecuria para o Centro-Oeste do Brasil, foi parar nas mos de fazendeiros, em sua maioria provenientes de outros estados brasileiros.
Os conflitos por terras em MS ocorrem h dcadas. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), h 21 terras indgenas guarani (nhandeva e kaiow) demarcadas no estado, com um total de 48 mil hectares.
H, no entanto, 11 terras j identificadas ou declaradas como guarani, com um total de 194 mil hectares, mas que ainda no foram demarcadas, entre elas Panambi Lagoa Rica, que aparece no epicentro dos mais recentes conflitos envolvendo indgenas e fazendeiros. No incio de agosto, mais de dez indgenas ficaram feridos, alguns gravemente, depois de ataques de homens armados a retomadas da regio.
A terra de Panambi Lagoa Rica foi delimitada em 2011, mas nunca chegou a ser demarcada. Os Guarani resolveram, portanto, tomar a iniciativa e forar a concluso do processo. Em resposta, um grupo de pessoas que se posiciona contra a retomada decidiu montar seus prprios acampamentos para dissuadir os indgenas a deixar a rea. Tambm presentes no local, esto homens da Fora Nacional de Segurana.
Segundo a Aty Guasu (grande assembleia) guarani, o grupo armado formado por produtores rurais, jagunos, populares movidos por ideias anti-indgenas e postulantes a cargos pblicos.
A assembleia indgena denuncia que esse grupo uma agromilcia, que vem promovendo tiroteios, terror psicolgico, agresses fsicas, derrubada de barracos montados pelos indgenas e violncias variadas, como ameaas de agresses sexuais a meninas e mulheres indgenas, de acordo com nota divulgada pelo Conselho Indigenista Missionrio (Cimi).
A gente no se sente seguro l. E, quando a gente precisa ir na cidade, bem complicado, conta o jovem guarani ouvido pela Agncia Brasil.
Terras em disputa se espalham pelo estado, s vezes envolvendo confrontos armados, seja com grupos paraestatais seja com as prprias foras de segurana de MS. Segundo o presidente da Federao da Agricultura e Pecuria do Mato Grosso do Sul (Famasul), Marcelo Bertoni, h 275 mil hectares de propriedades rurais que esto sendo contestadas por indgenas.
Amambai
A retomada de Guapoy Mirim, em Amambai, no sul de MS, outra dessas reas em disputa. Diferentemente de Panambi, a Terra Indgena de Amambai foi a primeira a ser demarcada no estado, ainda em 1915. A rea tem 2,4 mil hectares e uma populao de mais de 8 mil Guarani, mas eles consideram que seu tekoha bem maior.
H alguns anos, alguns Guarani decidiram se aventurar para fora dos limites da terra indgena e ocupar o espao de uma fazenda, limtrofe rea demarcada, que, segundo eles, pertence ao seu tekoha.
Ns reivindicamos essa terra h muitos anos, mas ela no retorna para a gente. Ento a gente pensou que tinha que vir de novo para esse lugar. Cem anos atrs isso aqui era tudo mato e agora no tem mais. Est acabando a natureza, afirma o cacique de Guapoy Mirim, Roberto Benitez, mostrando uma vastido de terra desmatada para dar lugar agricultura.
O processo de retomada dos indgenas no foi fcil no incio. Quando os primeiros Guarani montaram sua aldeia na rea da fazenda, policiais militares fizeram uma operao armada para conter o que os fazendeiros consideram como invaso.
Um dos Guarani, Vito Fernandes, morreu e outros oito ficaram feridos (entre eles dois adolescentes e um menino de 13 anos baleado no abdmen) no episdio ocorrido em 24 de junho de 2022, chamado pelos moradores do local como Massacre de Guapoy Mirim. Trs policiais tambm se feriram.
Relatrio do Conselho Nacional dos Direitos Humanos afirma que os policiais prestaram socorro s vtimas e as levaram ao pronto-socorro. Os agentes tambm afirmaram ter sido recebidos a tiros pelos indgenas.
No entanto, o CNDH condenou a ao da polcia, que, segundo o conselho, envolveu o uso de fuzis, resultou em vrios disparos pelos agentes, no teve autorizao judicial nem contou com a participao da Fundao Nacional dos Povos Indgenas (Funai).
O homicdio de Vito Fernandes ainda est sendo investigado e, no ltimo dia 9, a Polcia Federal exumou seu corpo, que estava sepultado na prpria retomada, levando-o para Dourados, para que o Instituto Nacional de Criminalstica pudesse fazer uma percia, sob protestos dos indgenas.
Eu quero descobrir quem matou meu pai, se foi o pessoal que estava no cho ou no helicptero. Mas eu queria que eles fizessem a percia aqui [na aldeia]. No queria que tirassem o corpo do meu pai daqui, mas eu tive que colaborar com eles, contou o filho mais velho de Vito, Willis Fernandes, que vive na retomada com a famlia.
Depois da operao policial, os indgenas reocuparam a fazenda e mantm a retomada desde ento. Outras duas lideranas foram mortas nas semanas seguintes, em episdios com aspectos de emboscada segundo o Cimi: Mrcio Moreira e Vitorino Sanches.
J se aram dois anos desde os assassinatos. As ameaas, no entanto, no acabaram. Alguns meses atrs, um pessoal veio aqui e disparou tiros na direo das casas, pra assustar a gente, relata o cacique Roberto.
O cacique conta que a vida ali difcil, porque eles no recebem, das autoridades, apoio para transportar as crianas para a escola da terra indgenas, localizada a alguns quilmetros da retomada, no possuem escola e nem posto de sade em Guapoy Mirim.
Eles no tiveram apoio, segundo Roberto, para comear seus plantios e encontram muitas dificuldades para vender sua produo a programas pblicos de aquisio de alimentos de pequenos agricultores, por exemplo. Apesar disso, eles se mantm decididos a permanecer ali, com o cultivo de suas roas e o reflorestamento de parte da rea.
Ns, indgenas, no sabemos de onde vai vir essa fora para continuar. Isso [a violncia e as dificuldades] acontece porque o territrio no est demarcado. Tem que ser demarcado. Os indgenas no vo [morar] numa parte que no deles. Mas, se eles sabem que deles, eles no vo naquele lugar, ressalta o cacique.
Dourados
Nos arredores da Terra Indgena de Dourados, ao norte da cidade homnima, onde 15 mil Terena e Guarani dividem um espao de 3,4 mil hectares, a luta para evitar que empreendimentos imobilirios avancem na direo de seu territrio demarcado desde 1917.
Novos condomnios residenciais crescem nos arredores da cidade de Dourados e se aproximam do tekoha. A reao dos indgenas consiste nas retomadas nas franjas da terra indgena, em direo cidade.
A cidade tem crescido muito por conta da dinmica de crescimento do agronegcio e tambm por conta das universidades. A partir de 2000, Dourados tem tido uma expanso urbana muito grande. E, junto com a expanso urbana, tem a questo da especulao. Tivemos a criao de vrios condomnios. Ao mesmo tempo em que tivemos a expanso urbana para o norte, amos a ter um movimento de autodemarcao dos Guarani, explica a professora de geografia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) Marcia Mizusaki, que tem, entre seus focos de estudo, os conflitos territoriais no MS.
As dificuldades enfrentadas nessas reas so as mesmas de outras retomadas: conflitos com proprietrios de terra e carncia de servios pblicos. Nossa retomada comeou em 2010, com a construo do rodoanel. Aqui onde a gente mora e em todas as outras retomadas, a gente vem sofrendo. sempre uma luta com o poder pblico, com os fazendeiros. A gente no tem apoio, conta Ade Vera, morador da retomada de Nhu Vera. A gente tem muita dificuldade com relao gua, tem bastante criana que est fora da escola, e a terra para plantar est ficando pouca, porque j tem muitas famlias vivendo aqui.
rea rural ocupada por indgenas nos arredores da reserva indgena de Dourados. - Tnia Rgo/Agncia Brasil
Nos ltimos anos, vrios ataques de seguranas privados e aes de foras de segurana deixaram feridos nas retomadas de Nhu Vera, Aratikuty, Nhu Vera Guasu e Avaete, localizadas nas franjas da TI de Dourados. Fazem de tudo para a gente desistir, mas a gente no vai desistir, afirma Ade Vera.
Fazendeiros
Na viso dos fazendeiros, as retomadas so uma ocupao ilegal de suas propriedades. Eu no vejo como retomada, vejo como invaso. No fomos ns que criamos esse problema. O produtor no tomou a terra de ningum. Se o estado tomou e vendeu essas terras, se a Unio fez isso, o produtor no o invasor. No concordo com essas retomadas, porque eles [os indgenas] descumprem a lei totalmente. Ento eu posso retomar qualquer rea que o governo vendeu">Quando um ladro entra na sua casa, voc o recebe de que forma, quando voc tem o jeito de se defender? Armado, de pau, de qualquer jeito. a mesma coisa com o indgena. Ele est entrando na minha casa. Ningum enxerga que essa a casa do produtor, justifica o presidente da Famasul.
FONTE: Agncia Brasil